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mem​ó​rias

by aguapé

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1.
Experimenta ficar misturado com a Terra. Se essa experiência de misturar isso que é você, que você pensa que é você com a terra, for boa, continue um tempo mais até a terra falar com você. Ela fala e o seu corpo vai escutar.
2.
* 01:08
3.
Terra. Eles não entendem o que tu sente. Escuto tua voz que faz tocar o acordeon. Avisa tua mamãe que estou muito longe. Sou como o povo que flutua pelo mundo, infame, pobre, sem povo e sem dor. Sou como nuvem que vaga pelo céu, que vai orando, sem o alento de Deus. Onde estás terra, meu coração? Não és que estou chorando, o rio se recordou. Onde estás? Eu sou somente passageiro.Terra é meu pensamento, comigo vai. Sou como o povo que flutua pelo mundo, para todos, tudo e todas que alguma vez partiram. Sem rumo, sem saber se voltarão. Eu, que parti sem saber o que me esperava, só não quero que nunca seja ingrata a minha raiz. Quero atravessar minhas tristezas, minhas lembranças, minhas alegrias, meu povo, minha gente, meus costumes, com fortes e longos cabelos.
4.
Toda forma de extração que a terra sofre, petróleo, gás. É uma forma fálica que invade seu núcleo. Sabemos como você é terra. A sua ciclicidade. Nos assustamos. Escolhemos ignorar. Sua forte linhagem. Seus quatro elementos. Água, terra, fogo, ar. Regem a vida, regem a você, regem a mim. E dão pulsão à uma força, a esse giro anual que se dá. Ama aquele seu movimento vertebral das placas tectônicas, terremotos, atritos. Tentando se livrar. Tentando ser. Tentando vibrar. Viva.
5.
Mulher. Corpo de luta. Travada com culpa, suor e sangue. Violação e resquícios de morte. Estupro. É vermelho meu sagrado. E também vermelha minha culpa. É sangue, foi sangue e será sangue. Carrego no ventre as mulheres do meu entorno, do meu passado. Carrego a culpa dos homens. E também, infelizmente, a vulnerável mulher e
6.
O som da água e das ondas do mar me lembram muito uma viagem que eu e minha família fizemos para Mangaratiba. Uma cidade do Rio de Janeiro. E só foi possível fazer essa viagem pois o meu pai estava trabalhando nessa casa de praia. Essa viagem foi muito única para mim, pois foi a primeira vez que eu me senti tão conectada com o mar e seus elementos. A areia, por exemplo, estava a cinco passos da casa. Então eu podia apreciar o mar a qualquer momento do dia. E eu lembro que a noite era um dos meus momentos favoritos, porque mesmo descansando, era como se eu estivesse no mar, boiando e não dentro da casa. Eu sentia os movimentos da água, eu sentia aquele barulho, e toda conexão com a natureza. Toda essa conexão com a água… me trouxe memórias que até hoje não foram esquecidas. Então, toda vez que eu escuto o barulho da água eu me lembro desse momento que foi tão único, tão especial para mim.
7.
Aaahh, o que, o que? (gaguejando) Que história que eu tenho? Eu não sabia nem a minha. Que história eu ia contar? Eu não tenho essa história… Meu nome é Jacob Martins Pereira , nascido dia 02 de dezembro de 1938, portanto estou com 81 anos… Que eu era pobre...não tinha nada, não tinha brinquedo, jogava bola, comum, mais tarde...bola, bolinha de gude...Meu pai, minha mãe e dez pessoas. Em um cortiço, é tipo, é como se fosse uma favela… muitas famílias moravam, aqueles prédios antigos… aquelas casas antigas… e a região já estava bem povoada, já tinha casa, só casa… e então meu avô administrava o cortiço, ele que tomava conta, ele que recebia os aluguéis. Eles eram de Jabuticabal, eram de origem de índia. É isso que eu lembro, você vê como é que é? Eu nem pensava mais nisso...você me fez lembrar, tá vendo? A natureza? Que que eu posso falar da natureza? Vou falar do que da chuva? Trovões? Das estrelas? Da lua? Sol? Do espaço? O que tinha no espaço? Eu sempre quis saber. Como que pode né? O céu? As coisas… eu sempre tive curiosidade de saber...a pessoa fala assim…. nossa, o satélite de tantos anos... como é que pode? Milhões e milhões de anos...as estrelas, a lua, o sol… como é que podia ser, né? Eu ouvia falar em saturno, em mercúrio… essa curiosidade eu sempre tive. Ahh deve ter, se a pessoa começar a pesquisar lá no fundo deve encontrar alguma coisa. Tá bom, aí a meditação, é uma coisa que eu sei. Eu comecei na vela, né? No fogo da vela. A vela, se acende a vela, não fica aquele fogo? Aquela chama? Aí você vai olhando a chama e fecha os olhos. Aí você consegue ver a chama, lá dentro. Tá entendendo? E você vai fazer esse exercício, às vezes você consegue uns 20 segundos até, já é um absurdo isso. Tá entendendo? Mas tem gente que consegue ficar mais. Isso é inicio de concentração.
8.
A cana era muito alta, e eu me lembro do barulho dela que quando ventava fazia xuaaaah, parecia o mar… eu viajava, achava que eu estava no mar, xuaaaah, xuaaaah. Você imagina, uma casinha no meio do canavial? Só nossa casinha, ninguém via a nossa casinha. Só quando cortava a cana que a gente aparecia. Hoje, eu realmente, nunca mais vi tanto vagalume junto. Nunca ouvi nem ninguém falar. Nessa época não tinha celular, não tinha como tirar foto. Não tinha nada. Eu me lembro que ficou todo mundo mudo. A gente não conseguia nem falar. A gente só conseguia ficar extasiado olhando para aquele tanto de vagalume brilhando e piscando… aaah… dormi com aquilo. Aí teve aquela coisa, é um bom presságio. Pra criar as abelhas a gente tinha que ser muito cedo. -Porque? Pra pegar elas fora. Elas saem cedo pra trabalhar e tem turnos. Então assim, a grande maioria das abelhas saem quando o sol começa a sair. Então quanto mais cedo você chegar lá, tem menos gente em casa. Então você incomoda menos, que a grande parte está fora. Demora um tempo, porque elas percorrem uns 2 km de raio, pra elas voltarem para casa. Então você tem que pegar elas fora de casa. Você não que pegar elas dentro de casa, que aí é picada na certa. Se trabalha com abelha de manhã, e não de tarde, quando elas estão voltando do trabalho, putas da vida. Tem toda uma lógica. Então a gente acordava muito cedo… e as galinhas ficavam embaixo do quarto que eu dormia, o galinheiro (risos) Porque a casa de fazenda normalmente não encosta no chão. Eles fazem uma estrutura, por causa de frio, de umidade. Isso era comum e em baixo dessas casas eles fazem buracos, espaços para colocar lenha, pra guardar coisa, essas coisas de roça mesmo. E às vezes, como era lá, faziam um galinheiro. Então o vão debaixo do meu quarto tinha virado um galinheiro. Então quanto horas da manhã já começava pou, pou, poh (imitando galinha). A falação começava. Aí eu já ficava: ai não, as galinhas já acordaram, daqui a pouco eu tenho que ir.. Porque a gente acordava com as galinhas...literalmente. Muita planta precisa da abelha, muita, muita,muitas plantas. Muitas plantas que a gente come, todas precisam das abelhas. Milho, arroz, feijão… Elas dançam, por exemplo, quando uma chega e encontra um plantio de assa-peixe, que elas amam. Elas amam alecrim, elas amam… -hum mel de alecrim Mel de assa-peixe, mel de alecrim… é tudo maravilhoso. Aí quando uma tá chegando, ela dá as coordenadas pra outra que vai sair se elas descobrem uma coisa muito rica, elas dão as coordenadas dançando. Eu tenho um livro que mostra as danças, o povo andou estudando, acho que o cara ficava olhando, o dia inteiro. E é uma coisa assim, eu entendo que elas eram matemáticas, como se diz…. Nasceram com isso dentro delas. Elas conseguiam explicar, dançando, era dançando porque parece uma dança. Mas elas estavam mostrando, com base no sol, a latitude e longitude para aquela outra abelha sair e encontrar a plantação, pra ela não ficar perdendo tempo. Então elas falavam, elas falam, elas se comunicam, com posições, faz assim, levanta, aí elas estão falando onde têm de ouro de assa-peixe. As abelhas são seres estelares, são divinos e elas tem uma importância fenomenal aqui, na Terra, sabe?. Como seres estelares e solares... elas são solares também,elas precisam de sol pra tudo, se não elas se perdem, elas sabem voltar pra casa pela posição do sol, elas sabem passar informações uma para outra pelo sol. Sei lá o que que foi, e aí as abelhas, e cheiro saiu, né? O negócio é tirar o cheiro. Na hora que você mata abelha ela joga um feromônio de morte, todo bicho solta...o cheiro da morte, né? O cheiro da morte é um cheiro que a gente também solta, mas o cheiro do pavor da morte.. todo bicho solta. E abelha solta um cheiro de segurança inclusive, e ativa todo enxame. Por isso quando a abelha te pica você não pode fazer nada.
9.
Mailza 01:34
Eu vou contar a experiência de contato com a terra mais profunda que eu passei. Que foi quando eu fiquei quase dois meses acampada, no meio do mato e sem energia elétrica, sem nada. É um lugar bem ermo, bem longe. E foi num pedaço de terra comunitária, de várias pessoas. E o cerrado lá é um cerrado, em Goiás, tá bem preservado. Se chama Terra Ronca. A cidade mais perto dali ficava a mais de 100 km. Então tinha rio, muitos animais selvagens, muitas plantas nativas. E a gente estava em 30 ou 40 pessoas…. e estava todo mundo nu. Todo mundo andava pelado já. E logo na primeira semana, que eu tava lá, andando pelo mato, eu enfiei meu pé em um brejo e perdi meu chinelo. Que era o único sapato que eu tinha levado. Nisso eu senti que era o chamado, o chamado da terra. Pra esse contato intenso. Do pé. Fui me desapegando de tudo e até das roupas. Lá não tinha tempo, não tinha obrigação. A gente se sentia como um organismo, vivo, conectado. Responsável por se alimentar, aquecer, produzir arte, conversar, nos conectar… e assim nua, fui me despindo das minhas máscaras, das minhas crenças e me vi renascer em cada banho de rio.
10.
Esses dias quebrei meu relógio. Nem tive tempo de arrumar outro para por no lugar. Não sei se tem haver mas percebi que estou dedilhando menos pelos minutos e deixando meu corpo fluir pelas horas, pelo dia, e naturalmente ele vai. Não sei se foi nessa ordem. Será que flutuar assim fez o relógio quebrar? Ou o relógio quebrado me deixou assim? É círculo, círculo incerto e às vezes é mais dilatado, estourado, as vezes é fino, fino e a gente nem vê passar, de tão rápido que foi. Às vezes a gente está no agora. Eu estou no agora. Mas a pele sente como se fosse o agora de uma memória muito, muito longe, que eu já não lembrava por imagem. Mas que o tato trouxe de volta. Sentir. Eu tenho sentido de todas as formas. Minha pele e membrana me deixam entrar o que me cabe. Presenteio o mundo com que acho que posso e que sinto que ele merece. Às vezes entro demais, aí preciso abrir espaço, sufoco, assopro.. aaaan, alívio o nó da garganta. Me sinto nadando, quando a pele não está acostumada com a superfície que ela toca e parece que você sente cada milímetro dela, assim, assim mesmo. Quando ela não sabe direito do que se trata. Com o que tá lidando. Criança que brinca na areia. A areia já senti ela tantas vezes, mas me continua estranha, o pé precisa estar ali pra conferir. Afunda o pé na areia enquanto assiste o nascer do sol. E sente que ele é o primeiro de muitas maneiras possíveis. Sentir um fio, tão, tão fino que parece puxa tudo, na cabeça, no peito, no corpo, nesse magma todo. E amarra. E será que espreme e é isso que me faz lacrimejar? Eu chorei muito quando vi o sol nascer naquele dia. Porque o fio saiu para fora do meu corpo e ele trouxe o mundo todo, o mundo todo. O laranja, eu esperava toda aquela energia mas, não esperava aquele laranja. E ele veio porque quis vir. Fugiu do branco enevoado e foi puxado pelo fio também, veio, nasceu em mim, nasceu inteiro. Junto com o mundo inteiro, o Brasil inteiro. A América Latina inteira.
11.
É, pequi é uma fruta do cerrado. E ela tem uma polpa, muito amarela, muito amarelada, rica em vitamina e,c, E na ausência de carne o povo come pequi. É uma espécie de carne mesmo, é carne mas não é, né? Porque você tem que roer.. e é muito pouco, né? O que tem envolta do pequi é muito pouco. -É… eles ficavam me mostrando como comer É mais aí tem a castanha. Você deixa secar e tira a castanha. E a castanha é deliciosa. E é engraçado a castanha não tem gosto de pequi. Esse cheiro forte, esse gosto forte fica na polpa. Aí tem um super proteção, que é essa proteção de espinho e depois tem a castanha. E é perigoso, né? É. Se você não souber comer entra no dente. Entra na língua, entra na boca. E os espinhos furam a boca. É isso.
12.
Outro tempo, outro espaço, outra memória. Terra. A terra livre, terra fecunda, terra epiderme, terra ancestral. Daqui de dentro, colho, recolho meus rastro, cacos, fragmentos de uma história. Memória. Eu com o outro no mundo. Um corpo a deriva, o corpo negro. Meus pés na terra. sinto, lembro, logo enraizamento. Antologia de um corpo árvore.
13.
Tenho muito tino com a terra. Adoro mexer com terra. Me acalma. Gosto muito de plantar, eu gosto de capinar. Quando eu estou lidando com a terra, eu esqueço todos os problemas e me distraio. Tenho prazer em mexer com a terra. Amo mexer com a terra. Gosto do cheiro da terra. Do cheiro do mato. Porque eu fui nascida e criada na roça. Então eu gosto muito de interagir com a terra. Plantar. Na hora que eu vejo… plantar horta, plantar flor… tudo que vê que é pra mexer com a terra eu gosto. Me sinto muito feliz a hora que eu vejo minha plantação florindo, produzindo. É porque a terra, ela responde o que a gente faz com ela. Se você cuida, se você planta uma flor ou um canteiro de verdura e cuida… molha, capina e tira o mato direitinho… ela te responde. Depois você volta e vê que aquilo tá bonito… te da a resposta do que você fez. É muito gratificante.
14.
Bem, o valor da água é algo inestimável. Eu tive essa experiência, porque, com 5/ 6 e 7 anos de idade, eu já buscava água lata d’água. Era balde, aqueles baldes de pintura, que hoje ninguém dá nada. E nós andávamos uma distância muito grande pra pegarmos água. E eu sempre enchia tambor dos vizinhos, né? Para com essas moedas ajudar meus pais na criação dos meu irmãos. Eu sou filha de um casal com cinco filhos, eu sou a mais velha. Então eu tenho muito essa experiência da natureza. Da água, da importância que ela é na nossa vida e da falta que ela faz. Essa questão da água ela precisa estar entranhada dentro de nós. Do economizar. Do saber usar. Até para que as gerações futuras não precisem passar por escassez casadas não pela natureza, mas pelo homem. A água ela faz falta. Nós viemos do pó. E esse pó ele foi argamassado com água e nós, muitas das vezes não damos valor. Eu sei o que é ficar sem água. Eu sei o que é buscar lata d’água na cabeça.
15.
O único registro que tem é uma foto que é uma tirinha, sabe? Nem é uma foto completa, é só uma tirinha mesmo, igual os antigos faziam. E tem lá minha bisavó Maria Laurinda e meu bisavô Sebastião Carapuça. E eu acredito na ancestralidade como uma linha que não tem começo, nem fim. Mas a gente é o meio disso tudo. Só que para a gente conseguir, dar procedimento nessa linha, a gente tem que estar sempre de olho atrás, do que veio atrás. Eu acredito muito na figura dos meus bisavós como a figura que me protege. Acredito neles como se fossem meus deuses mesmo. Sabe? Meus santos. Meus guias. Meus orixás. Para mim são os meus bisavós. E quando eu era criança, bebezinho mesmo, tipo um ano, talvez, eu fui morar com a Maria Laurinda que é minha bisavó e minha bisavó e minha vó Maria.. gente me fugiu o nome, acho que é Maria Silva, tem alguma coisa depois de Silva, que eu não lembro... Eu fui morar com essas mulheres. E minha bisavó ela era de um culto que chamava Tereco, que é o Tambor da Mata lá do Maranhão. E eu acredito que nesse processo que eu fui morar com a minha bisavó, ela colocou alguma coisa dentro de mim. Que é um termo que tem no Maranhão que chama de pedra da memória. Que são as pessoas, elas não são especiais, elas são tipo selecionadas para cuidar dessa questão da ancestralidade, sabe? Para poder zelar por isso. E quem guarda a pedra da memória dentro de si, busca muito essas questões. E eu acredito que eu consegui isso tendo que ir morar com a minha bisavó. E também eu acredito na minha bisavó e no meu bisavô como os meus pólos negativos e positivos, masculinos e feminino, sabe? Sendo o meu bisavô o lado feminino porque ele era uma pessoa mais calma, ele era uma pessoa mais amorosa, eu acredito que ele é meu lado feminino, meu lado da paciência, o lado artístico. E a Maria Laurinda sendo o meu lado mais impulsivo, meu lado de fazer as coisas acontecerem… e essas coisas… Eu tenho pouca memória dos meus bisavós. O que eu tenho de história deles é tudo que minha mãe me conta. Porque minha mãe foi criada com eles, passou mais tempo com eles do que com a própria mãe. Então, eu conheço bastante deles através das memórias da minha mãe. Agora minha mesmo, eu tenho só uma. Que é de Maria Laurinda sentada embaixo de um pé de bananeira. E eu tenho um afeto muito grande pelos dois, porque…. nossa, eu não sei nem explicar, pra mim eu só estou aqui por causa deles. E eu relaciono muito o fato deles serem pessoas nômades, eles eram pessoas nômades a toda a questão de terra que tinha no Maranhão, a questão dos latifundiários, dos pequenos agricultores que viviam fugindo, porque não tinham onde morar. Os meus bisavós eram assim, eles carregavam minha mãe para cima e para baixo, nos anos 70/80. E eles viviam assim, e me inspira bastante, acho que a memória mais afetiva que eu tenho é essa. Da minha bisavó, e as que minha mãe conta.
16.
A minha experiência com a terra é ter participado de uma horta comunitária em uma creche onde minha mãe era presidente. Nós não tínhamos terra, a terra hoje chamada Vegetal. Então eu me lembro que nós cavávamos ali e buscávamos, esterco né? Esterco de boi, de vaca, longe, muito longe com o carrinho de mão. E mexer com a terra é muito bom. É tudo de bom. Você semear uma semente num campo limpo e depois ter o prazer de ver o broto. De ver o caule. Você ali molhando, cuidando. Tirando as ervas daninhas, protegendo aquela semente, para que dê frutos e possa alimentar outros. Lidar com a terra, com o barro, com a essência da vida, é muito bom. Você se sujar né, você colocar mão ali, no sol quente, a chuva vem… você vai lá se preocupa… e o fruto disso, o resultado disso, é muito bom, você poder matar a sua fome e de outros através de uma semente tão pequena que criou vida e com essa vida pode alimentar outras vidas. Muito boa essa experiência com a terra.
17.
Kuru Lima 03:59
Pelo quieto… nunca tive essa busca. Nunca tive a busca do tranquilo, sempre tive a busca da inquietude. Então quando eu me lembro de coisas assim mais ligadas à terra a memória mais forte que me vem é minha relação com o rio, como o Rio São Francisco. O rio sempre era uma referência. Na cidade eu cheguei muito menino, eu cheguei para morar em Pirapora com cinco anos de idade. Era muito bom, porque logo muito cedo com 6/7 anos eu já comecei a andar, ir em padaria, sair, andar dez quarteirões pra longe de casa. Sozinho. Eu só não podia ir sozinho pro rio, eu não podia ir sozinho. Mas o rio era sempre referência. Eram duas coisas que eram sempre referência para mim da casa onde eu morava. Eu só me lembro de morar em uma casa em Pirapora, se eu morei em outra eu não me lembro. Então eu tinha muito essa referência do rio, assim de localização, o rio era o grande marco da cidade. Tinha três ambientes no rio que eram muito distintos. Parece que tem uma parte de Pirapora que é mais rural, que fica antes das corredeiras, onde o rio é caudaloso. É aquela coisa enorme caudalosa. Perigosa. Eu tinha medo. E por outro lado tinha na parte onde tinha as corredeiras, era o lugar que eu não tinha medo. Onde tinha as pedras, as duchas, porque eles fizeram uma semi barragem, assim nessa parte, para as pessoas se banharem,para ter lugar para nadar. E abaixo disso tinha as corredeiras, umas duchas, porque tinha uns tubos assim que você tomava água que vinha da retenção e em seguida tinha muitas pedras. Ali, eu me via como um ser daquele lugar. Eu tava ali como ser totalmente sem medo. E eu sempre tinha a coisa de andar, quando os meus pais estavam na beira do rio, eu sempre tinha o hábito de andar nas pedras. E ia sempre com o desafio de conseguir ir mais longe… de conseguir ir mais longe. E tinha também os ciclos né? VocÊ vivia esses ciclos. A época da cheia, a época do vazio. A época do rio, da estiagem. Onde as pedras apareciam mais e pareciam que dava para atravessar até Buritizeiro que era a cidade que tinha do outro lado. E tinha a ponte né. Mas engraçado que eu nunca atravessei, nunca atravessei pela ponta. E lógico que eu também nunca atravessei pelo rio, porque seguramente eu morreria, porque tem uma parte do rio que continua tendo pedra sendo caudaloso. E eu via né os canoeiros que andava com as canoas no meio das pedras para pescar, porque os peixes ficavam entocados ali. E depois abaixo disso, na parte baixa da cidade, onde ficava estacionado o Benjamim Guimarães, um navio. Nessa região é o que a gente chamava das praias. Tinha uma praia de areia, areia de rio, que é uma delícia também, pra ir. No passado, século IXX, você ia de Pirapora para Pernambuco pelo rio. Mas lá era um lugar perigoso, porque se acabava a praia tinha vários navios estacionados. O Benjamim foi o único que sobrou. Eu nunca tive medo do rio, eu sempre achei o rio muito amigável, muito bacana.
18.
Quando eu cheguei aos noves anos de idade meu pai ficou doente. Teve uma tuberculose. E foi internado no sanatório de Campos de Jordão. Mamãe viajava todo fim de semana para levar fruta, ovos. Ele ficou um ano na cama e fizeram todos os exames nele, depois de um ano de repouso e marcaram uma cirurgia para tirar sete costelas, entendeu? Pensei que ele ia ser operado, e se operasse ele ia ficar torto, que ia arrancar sete costela, ia ser uma coisa horrível. E meu pai era jovem, bonito. E eu era criança, e tinha fé em São Judas Tadeu e Nossa Senhora Aparecida. Aí eu comecei a fazer promessa. Peguei todos os vidros de remédio que meu pai tomava e enchia de moedas. Então, cada vidro que esvaziava meu pai mandava para mim. Porque eu não podia ver ele. As vezes que eu fui visitá-lo eu saia de lá deprimida, chorando, porque eu era agarrada. Filha única. Só tinha ele e minha mãe. Então, eu não podia chegar perto dele. Naquele tempo a gente ficava afastado, como é hoje, que pedem pra ficar com esse Coronavírus aí. Então eu enchi os vidros de penicilina, os oito vidrãos de um quilo de moeda. Um peso… meu tio que levou até, no carro dele. Aí eu fui com ele para Aparecida do Norte, que eu prometi levar as moedas, agradecer. Mas antes disso acontecer eu fiz um pedido também para São Judas Tadeu, para que ele intercedesse junto a Nossa Senhora e Jesus para o meu pai melhorar. Porque eu antes, não sei se era coisa de criança, visão… eu não sei explicar… eu pedi para São Judas para ele não deixar ele operar, eu me ajoelhei, pequeninha pro santo, olhei pro santo e pedi ele com toda fé do mundo que meu pai não operasse. E eu perguntei para ele: me dá um resposta, o que que o senhor acha? E eu vi, com esses dois olhos. Que a terra vai comer, o santo fez assim. Agora não sei se é alucinação, coisa de criança… isso eu não posso explicar. E aí o médico fez todos os exames novamente no meu pai e quando pegou os resultados meu pai tava são. Não precisava operar. E não teve mais problema, com meu pai. Até que ele morreu comigo, depois de… quantos anos?... tava com 92 anos. Essa é uma lição de vida para mim.
19.
Tempo de colher manga madura do pé é este. Tempo de terra amarela e mata seca. Cigarra que explode, galho retorce. Madeira em flor. Vida que se espreme até caber quieta no coração que é selvagem. Ou coração que se estica até caber em cada pulso, ter o tamanho para seguir pelo território nacional. Praias e tombos de mar, coragens e vontades para com a alma. Sobrevivências e almoços ao alho e cebola. Asfaltos e ventos na cara para tirar as células mortas em batalhas. Serra e cerrado. Caatinga. E voam os pássaros internos, enterros. Viver é ressurreição. Esperar o corpo com calma virar espírito. Esperar o corpo com calma, virar espírito. Eucalipto, nuvens, algodões. Carros rasteiros. Conversas entre vaginas e perdas. Choros e risos de alegria coalhada. Chegou o tempo de vingar. Agora indo as àguas de sal e o sal da terra. Entendo que viver é estar, embora que agora sangro. Há necessidade de respirar e deixar entrar o que for para ficar e deixar sair o que tende a ir, selvagem é o tempo que ensina com morros e sopros.
20.
água 01:00
sons contínuos de água correndo em rio
21.
Vou te contar uma história que não esqueço nunca. De um aluno que eu tive que chamava Halley. Tipo o cometa mesmo. Ele era um molequinho de uns ⅞ anos e ele morava com a avó, mas quem tinha a guarda dele era o pai dele. Porque a mãe viciou em crack e sumiu. Ele era levado, assim, mas muito esperto. Tinha pouco contato com o pai, a avó tratava ele bem mal, tava tendo problema de convivência. E na escola e situação muito complexa. Mas assim, ele era muito esperto, muito esperto, muito esperto. Ele acabava primeiro que todo mundo e o que sobrava era zoar o plantão. Aí um belo dia, tipo, surgiu um rumor de que ele não era filho do pai dele, porque, tipo assim, ele não parecia mesmo. Mas como ninguém nunca tinha visto a mãe dele...Ai esse cara ouviu falar nessa história e resolveu comprovar e fez o teste de DNA e comprovou que ele não era filho mesmo. Aí tipo o cara, pensou, e a primeira coisa que ele pensou acho foi entregar o Halley para adoção. E eu vi esse moleque no dia, tipo assim, saindo da escola correndo, chorando. Aí no dia seguinte falaram que o Halley sumiu de casa,fugiu de casa… voltou uns quatro dias, ficou três dias ao léu, foi achado em outra cidade. Ele conseguiu pegar um ônibus, pagar e vazar,assim… e foi muito louco, muito louco a história desse moleque. Não esqueço jamais, Halley.
22.
eu vou ler um poema do Allan Jonnes, chama o Triunfo do Chão Pode-se modificar o metro de uma perna. O cabeleireiro modifica o centímetro de um cabelo. A natureza amplia o metro de um menino, um acidente o diminui em pelo menos metade Há capacidades para tudo isto. Só os metros entre dois endereços no continente é que são irrevogáveis. Dado que no início olharam os lugares do mundo para dividi-lo E o fizeram por debaixo instituíram o triunfo do chão sobre os animais de pé que se moviam Daí o caráter rasteiro do mapa-múndi – a imensa figura de um chão. Dado que se uma força arrastasse todo o reino animal do Timor-leste para outro canto essa força ainda não bastaria para arrastar o nome Timor-leste para junto dos seus animais O que está em pé não interessa, disseram, e começaram com a cartografia. De modo que o volume de uma casa também não tem validade nenhuma para as instituições Se eu desarmo por exemplo minhas paredes e levo embora a casa E aparece no lugar um homem dos correios ele deita os meus papéis por cima do deserto e vai embora.
23.
Eu não sei como a gente vai fazer uma experiência de afeto mediado por uma tela

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Aguapé é uma espécie de planta aquática originária das massas de água doce das regiões tropicais quentes da América do Sul. É considerada uma espécie-praga por aqueles que não entendem o seu potencial de remover poluentes das águas.
Entre os limites que serpenteiam os campos de grandes latifúndios ou dentro dos lagos formados por rejeitos de mineradoras a planta encontra sua fonte de sustento. Seus talos e raízes são sensíveis ao esquecimento e através de um processo de escuta, cultivo de memórias ancestrais e fortalecimento de vozes locais ela consegue se alastrar por grandes áreas.
Ao se reproduzir cada Aguapé se mantém conectado ao outro, formando uma grande rede e assim aqueles que param para escutar conseguem se conectar com as vozes e se reconhecem como terra.

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released May 21, 2020

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aguapé Belo Horizonte, Brazil

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ESCUTA


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